Quem foi Pedro Álvares Cabral?

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

Quem foi Pedro Álvares Cabral? Pergunte-se a qualquer escolar e a resposta virá na ponta da língua: o descobridor do Brasil. E só. Nos livros de história, o navegador português não costuma ganhar mais do que poucas linhas. Não mereceu, tampouco, ter seu nome incluído na mais fantástica celebração das conquistas marítimas portuguesas. Os Lusíadas, de Luís de Camões. Enquanto as grandes navegações do final do século XV e início do XVI transformaram Vasco da Gama, Bartolomeu Dias e Fernão de Magalhães em heróis, Cabral morreu no ostracismo. Mais de 508 anos depois de realizar seu maior feito, aos olhos do mundo o navegador continua um ilustre desconhecido. Ele empreendeu uma das mais importantes navegações portuguesas, voltou a Lisboa festejado pelo rei e subitamente desapareceu das crônicas, morrendo por volta de 1520, quase no anonimato, numa casa modesta em Santarém, ao norte de Lisboa. Na lápide tumular, nenhuma referência a qualquer de seus feitos. Depois de tanto tempo, ainda vale a pergunta: quem foi mesmo Pedro Álvares Cabral?

Durante séculos cultivou-se a ideia de Cabral como um personagem menor na história das navegações. Como compará-lo ao grande Cristóvão Colombo, ou aos heróis lusitanos? Talvez a proverbial baixa estima brasileira tenha ajudado a pregar na biografia do descobridor a pecha de burocrata bajulador, um sujeitinho que comandou a maior frota portuguesa de seu tempo sem sequer ser um navegador de verdade, apenas graças à proximidade do rei dom Manuel e demais poderosos da corte. Agora se descobre que os maiores inimigos da biografia de Cabral foram ele mesmo e uma sorte madrasta.

Dono de um caráter irascível, famoso por suas crises de mau humor (alguns estudiosos creditam-nas às febres intermitentes, provocadas pela malária contraída ainda aos 17 anos, quando lutava no Marrocos), Cabral desentendeu-se com todo mundo que importava em seu tempo. A começar pelo próprio rei, passando por aquele que se acredita ter sido o maior de todos os navegadores portugueses, Vasco da Gama. No quesito “sorte madrasta” entra a verdadeira tragédia em que se converteu sua viagem à índia, a mesma em que o Brasil foi descoberto. O navegador partiu de Lisboa com destino à Índia com treze navios e retornou com apenas seis. Os azares renderam má fama a Cabral. O resultado: logo depois de voltar de sua viagem, o navegador brigão e desafortunado partiu para um exílio voluntário em Santarém e caiu no esquecimento. Para piorar, as novas terras que ele balizara como Ilha de Vera Cruz não teriam serventia para Portugal durante várias décadas.

“Os portugueses tinham mais interesse na Ásia do que na América”, afirma o historiador José Jobson de Andrade Arruda, da Universidade de São Paulo. E aí vem, de novo, o fado cabralino: quem encontrou o caminho marítimo para a índia, de onde provinham as especiarias que rendiam lucros à coroa, foi Vasco da Gama, justamente o maior adversário do nosso descobridor.

Criados juntos na cosmopolita corte lisboeta de então, Cabral e Gama tiveram formação muito parecida. Ambos estavam animados pelo forte espírito português que se sucedeu a cinco séculos de domínio muçulmano do país. “Era natural que os dois disputassem o comando das grandes armadas”, conta Galvani. Em uma minuta de 1499, que preparava a expedição que viria a descobrir o Brasil, consta o nome do comandante-mor da frota: Vasco da Gama. Vasco da Gama? Mais tarde, esse nome seria riscado e substituído pelo de Cabral, naquele tempo conhecido g como Pedro Álvares Gouveia. Apenas ao primogênito de cada família era dada a honra de usar o sobrenome paterno e Pedro Álvares era o segundo filho. Foi só numa carta que dom Manuel escreveu aos reis da Espanha que o sobrenome “Cabral” foi associado ao descobridor do Brasil.

O auto-exílio de Cabral em Santarém, logo após realizar sua maior façanha, possivelmente foi produto da antiga rivalidade com Vasco da Gama. Enquanto o navegador ainda percorria águas indianas, depois de descobrir o Brasil, a corte lisboeta já organizava uma nova frota a ser comandada por Cabral. Com catorze navios, seria ainda maior do que a enviada para confirmar a existência das leiras brasileiras. Mas Vasco da Gama ficou encarregado de organizar a empreitada, desta vez destinada apenas à Índia. Gama selecionou os marinheiros e escolheu os capitães de sua confiança. Ainda por cima, nomeou o irmão de sua mãe, Vicente Sodré, para comandar cinco dos navios da expedição. Sodré vigiaria a entrada do Mar Vermelho e o Golfo Pérsico, vias de acesso dos árabes ao Oriente. Enquanto isso, os outros nove navios, sob o comando de Cabral, seriam abastecidos com especiarias. Mas Cabral não aceitou dividir o comando da nova expedição com o tio de Vasco da Gama. Passados quatro meses de impasse, em dezembro de 1501 a recusa oficial foi encaminhada. Nesse momento, Cabral caía em desgraça.

A explicação para a atitude suicida pode estar no relato de um dos maiores cronistas quinhentistas portugueses, João de Barros, para quem o descobridor do Brasil era homem de “muitos primores de honra”. O significado mais forte da palavra “honra” estava associado à ideia de um sentimento de dignidade com brios. Cabral tinha motivos para não aceitar dividir o comando da expedição. Não foram pequenos os serviços prestados por ele a Portugal. Sua expedição de 1500 foi a primeira de caráter comercial a chegar à Índia. Vasco da Gama chegou antes, levou a fama, mas conseguiu apenas se indispor com o governante de Calicute, a mesma cidade que Cabral canhoneou quando esteve por lá. Só quando Cabral estabeleceu a feitoria em Cochin, no sul da Índia, é que a rota se tornou lucrativa.

Tais façanhas, no entanto, não comoveram o rei. Cabral mudou-se para Santarém no final de 1502 e não recebeu mais notícias da corte. No ano seguinte, compareceu a uma reunião da Ordem de Cristo, a organização religioso-militar que financiava as grandes navegações. Há quem aponte o fato como uma tentativa de reaproximação, já que dom Manuel presidia o encontro. Não surtiu efeito. Anos mais tarde, Cabral escreveu ao rei pedindo a “renovação dos privilégios de fidalgo” — em outras palavras, desejava abandonar o exílio voluntário e servir a Portugal novamente. Recebeu uma resposta encorajadora, em que o monarca dizia que a carta do navegador “lhe fez prazer”. Mas nada aconteceu.

Em 1514, Afonso de Albuquerque, governador da Índia e tio de Isabel de Casco, mulher de Cabral, escreveu ao rei pedindo que ele pusesse fim ao afastamento do navegador. Teceu grandes elogios ao descobridor, a quem chamou de “mui bom fidalgo”, “merecedor de honras”, e referiu-se a “sua bondade e cavalaria”. Apesar das recomendações de um dos homens mais importantes do império português, Cabral morreria dali a alguns anos sem voltar ao mar.

Não se sabe exatamente o que fez dom Manuel abandonar um de seus mais importantes navegadores, a quem havia recebido com festejos no retorno da expedição de 1500. A hipótese de que Cabral não passava de um nobre de poucos talentos é refutada pelos fatos. O descobridor foi apontado para comandar aquela que, até 1500, foi a maior armada já saída de Portugal. A frota que Vasco da Gama comandou até a Índia, entre 1497 e 1499, não tinha mais que quatro navios. Dificilmente se colocaria tamanho aparato sob as ordens de alguém que não fosse externamente respeitado, inclusive como navegador — embora não existam provas de viagens marítimas suas anteriores ao descobrimento do Brasil.

Sem título nobiliárquico, a família de Cabral tinha terras, o que significava riqueza suficiente para freqüentar a corte. Aos 10 anos, Cabral e o irmão mais velho mudaram-se para Lisboa. Lá, aprendeu a manejar armas e a montar. Estudou geometria, astronomia, geografia, aritmética e latim. Passou a adolescência e o início da vida adulta no Castelo de São Jorge, aquele de onde os turistas têm uma ampla visão de Lisboa. Isso fez com que Cabral se inscrevesse no círculo íntimo do rei, o que certamente colaborou para sua indicação como comandante da expedição à índia, Nada, porém, comprova que tenham sido essas credenciais as únicas responsáveis por sua escolha para o comando da grande armada. Os Cabral estavam muito longe em prestígio e fama, por exemplo, dos nobilíssimos Bragança, que chegariam ao trono português mais tarde.

Foi na corte que Cabral conheceu Isabel de Castro — ela, sim, pertencente a uma das famílias mais importantes de Portugal. O casamento não pode ser considerado um golpe do baú, embora fosse movido por interesses, como era comum naquele tempo. A data provável do matrimônio é 1503. A vida do casal em Santarém limitou-se aos cuidados com as propriedades, o tempo dividido entre a casa na cidade e as quintas. Tiveram seis filhos. Cabral morreu possivelmente em 1520, aos 52 anos, talvez em consequência da malária contraída na África, sem que tenha realizado coisa alguma digna de registro nas últimas duas décadas de vida. Enquanto isso, seu rival Vasco da Gama recebia o título de “dom” e era consagrado “almirante”.

O descanso e o esquecimento de Cabral duraram quase três séculos e meio, quando historiadores brasileiros e portugueses começam a estudar o descobrimento. Seu túmulo, na Igreja da Graça, em Santarém, foi reaberto. Buscava-se confirmar se o corpo dele estava de feto enterrado ali. Era o início de uma viagem que parece estar finalmente chegando ao fim: o descobrimento de Pedro Álvares Cabral. Faltará apenas Camões para cantar-lhe as glórias, como fez com — sempre ele — Vasco da Gama.

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